Cerca de 60 moradores da comunidade quilombola de Muquém, em Alagoas, tiveram que subir em dois grandes pés de jaca para sobreviver a uma grande enchente que atingiu a região nesta semana.
"Foi horrível. Passei a noite inteira rezando para que clareasse porque eu não sabia se meus pais estavam bem. Morria de medo de pensar que nunca mais eu ia vê-los", disse, sem conseguir segurar o choro, Mauricéia Nunes, que é professora na escola da comunidade.
"Para me acalmar uns meninos disseram que tinham visto meus pais em cima do telhado de casa, mas não era verdade. Eles passaram a noite inteira em cima de uma pilha de lenha que estava no quintal."
"O que dava mais medo era quando batiam uns paus (outras árvores arrancada pela água) na jaqueira em que a gente estava. Tremia tudo e parecia que a gente ia cair", contou o agricultor Manoel Nunes.
Aos 66 anos, ele é um dos decanos da vila. Ele lembra bem da jaqueira que lhe salvou a vida quando ambos eram ainda jovens. "A árvore não é muito antiga não. Tem uma base de uns 45 a 50 anos. Lembro dela pequenininha e nunca imaginei que um dia ela teria tanta importância na minha vida."
"Essa árvore é de ouro. Salvou", disse, com um sorriso, enquanto dá uns tapinhas carinhosos no tronco de sua salvadora.
Mas a satisfação de Nunes por ter sobrevivido parece desaparecer de sua face quando a pergunta é sobre o futuro. "Foi bom que eu me salvei e toda minha família também mas futuro eu não vejo não. É só pedir a Deus e esperar o que vier", diz cabisbaixo e com lagrimas empoçadas nos olhos.
A comunidade
Há séculos, a comunidade de Muquém - descendente direta do Quilombo dos Palmares - sobrevive na zona da mata alagoana, isolada do resto do mundo de um lado pela precariedade da estradas, de um lado, e a forte correnteza do Rio Mundaú, do outro.
Mas as águas do Mundaú que protegem e alimentam a comunidade mostraram que também são uma ameaça a sua sobrevivência. Não foi a primeira vez que o rio invadiu as casas, ruas e terreiros dos quilombolas mas os moradores não se lembram de nenhum episódio tão violento como o da semana passada.
Os moradores estão com medo de continuar ocupando as terras baixas e próximas do Rio em que vivem hoje, mas dizem que não há áreas mais seguras na região para onde todos possam ser transferidos e viver em segurança.
"A gente não tem para onde ir. Se o governo ajudar a gente a sair daqui a gente sai, pelo menos pra parte mais alta porque aqui não dá mais", disse Mauricéia.
"A gente não sabe o que é que faz. Estamos aqui de mãos atadas esperando a boa vontade de alguém vir ajudar."
Por conta do isolamento do quilombo, os moradores foram dados como desaparecidos nos dias seguintes à enchente.
Só na última quarta-feira a primeira equipe de resgate chegou ao local e constatou que todos os cerca de 700 moradores da vila do Muquém haviam sobrevivido.
A jaqueira
O cortador de cana Gilvan Nunes diz que vai se dedicar à jaqueira.
"Se qualquer um tentar cortar um galho dessa jaqueira agora, a gente vai dar uma pisa (surra) para ele nunca mais esquecer. Essa árvore salvou a vida de muita gente."
Favorecido pelos 21 anos de idade e pela força adquirida na lida com a cana, Gilvan ocupou um dos galhos mais altos da jaqueira e ficou a cavaleiro sobre um galho e abraçado ao tronco "das seis da tarde até as três da manhã."
"Fui buscar um pacote de bolacha que ainda não estava molhado e um refrigerante para o pessoal comer. Estávamos quase sem água nem comida. Era horrível", diz.
O jovem conta que aqueles que estavam nos galhos mais baixos monitoravam a água e passavam o relato aos demais. "De vez em quando a gente ouvia 'tá abaixando' e vinha alguma esperança. Mas ai pouco depois vinha alguém dizendo 'tá subindo' e vinha aquele desespero todo de novo."
Também foi ele um dos primeiros a descer da árvore quando a água acalmou um pouco para buscar comida e bebida para os companheiros. "Aqui todo mundo é unido. Passamos a noite inteira juntos rezando e conversando para dar coragem."
Futuro
A união em Muquém é reforçada pelos laços de sangue: a grande maioria dos moradores da comunidade é de uma mesma família e em quase todos os casamentos há algum grau de parentesco entre marido e mulher. São raros os moradores que não carregam o sobrenome Nunes.
Gilvan Nunes fala com orgulho das origens de sua comunidade. "Nossa história é muito importante para nós e é algo que a gente não pode perder. Tem que passar de pai para filho", diz.
O jovem quilombola teme que a destruição provocada pela enchente leve muita gente a se decidir por ir embora da comunidade. Mas diz que nem assim o quilombo vai acabar.
"Mesmo que vá todo mundo embora, isso aqui não acaba. No mínimo vai continuar vivendo na nossa memória." BBC Brasil - Todos os direitos reservados.
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