Fazenda Água Boa, onde se localizam as reservas Juerana e Sapucaia (BA). Foto: Norberto Hess |
O que aconteceu com Hess foi apenas o desfecho de uma história que começou em 2006, quando a Coelba comunicou-lhe que uma linha de transmissão de energia cortaria sua propriedade e que, para isso, seria necessário desmatar uma faixa de 15 metros. Hess não concordou com o desmate, a menos que ele fosse autorizado pelo órgão ambiental competente. A negociação durou mais de dois anos. Neste período, o proprietário sugeriu à empresa de energia caminhos alternativos para a linha de transmissão nos quais não seria necessário o desmate, mas nenhuma proposta foi aceita. “Acho que aumentar em três ou quatro quilômetros a linha para contornar a RPPN não era muita coisa para eles”, diz o proprietário.
Após uma série de negativas da empresa, Hess concordou com a derrubada, desde que houvesse uma compensação ambiental, que consistia em ajuda financeira mensal para que sua família mantivesse funcionando uma escola de educação ambiental na propriedade. Nada mal para uma empresa que obteve lucro líquido acumulado de R$ 814,8 milhões em 2008, o que representou aumento de 25,9% em relação ao ano anterior.
A resposta da empresa ao pedido foi um Decreto de Utilidade Pública da obra, apresentado à família, isentando-a de qualquer compensação. “Depois desse decreto, acho que eles não se sentiram mais obrigados a negociar comigo”, diz o proprietário. Essa foi a primeira derrota de Norberto Hess. Na última quarta-feira, enquanto acompanhava os trabalhos da Coelba, ele percebeu que o limite de 15 metros de derrubada não seria respeitado. Ao tentar impedir, foi preso. Agora responde criminalmente por desacato à autoridade.
Onde tudo começa
A história das RPPNs Sapucaia e Juerana começou na década de 1950, quando o pai de Norberto, Hatmut Hess, deixou a Alemanha com destino ao Brasil, motivado por um anúncio de jornal que procurava químicos na área de manufatura de borracha na Bahia. Em 1959, sete anos depois de desembarcar no país, Hatmut começou a comprar as áreas que hoje formam a fazenda Água Boa, em Maruá, com 227 hectares.
Na década de 1980, a família Hess, consciente da importância biológica da área, tentou implantar um refúgio de fauna na propriedade. A tentativa não deu certo, mas o desejo de preservar a mata permaneceu, até que, em 1998, o processo de criação das RPPNs fosse encaminhado.
Área desmatada da RPPN para a instalação de linhas de transmissão de energia. (Foto: Instituto Água Boa - Maruá (BA) |
“Casos como este [da prisão] desestimulam toda a luta pelo meio ambiente. Me pergunto por que vou fazer isso [preservar]. O desmatamento está muito forte na nossa região. Os madeireiros não são presos e eu sou?”, questiona-se. Segundo ele, ao analisarem a ação por desacato, seus advogados descobriram ainda que a autorização do órgão federal que a Coelba informava possuir nada mais era do que uma licença para abertura de picada para medição. Não havia documento do órgão federal liberando o desmate.
Quem paga a conta
A Reserva Particular de Patrimônio Natural é uma categoria de unidade de conservação prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). É criada por portaria do órgão ambiental federal. No caso específico das RPPNs Juerana e Sapucaia, as unidades encontram-se em trecho classificado como sendo de alto interesse de biodiversidade pelo Atlas de Remanescentes de Mata Atlântica, bioma considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal.
Por todos esses motivos, a não-governamental SOS Mata Atlântica, que junto com outras organizações possui um Programa de Incentivo à RPPN, acha que o Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão agora responsável pelas unidades de conservação do país, deveria se manifestar com veemência em relação ao ocorrido com Norberto Hess. “Os proprietários de RPPNs fazem de boa vontade um compromisso que é do governo, o de preservar a biodiversidade”, diz Márcia Hirota, diretora de Gestão do Conhecimento da ONG. “O governo tem que agir firmemente em relação a isso, senão amanhã ninguém mais vai querer criar RPPN no país”, alerta.
Para a advogada Sônia Maria Pereira Wiedmann, doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente pela Universidade de Strasbourg (França) e que por 32 anos foi procuradora do Ibama, há várias ingerências no caso de Hess. A primeira é que a empresa de energia deveria ter consultado o ICMBio. O segundo erro foi não prever antecipadamente caminhos alternativos para a linha de transmissão que evitassem o desmate e não ter aceitado as alternativas sugeridas pelo proprietário da área. O terceiro foi que a Coelba, em hipótese alguma, segundo a advogada, poderia ter excedido o desmate da área acordada previamente.
O Instituto Chico Mendes foi procurado pela reportagem e, no primeiro contato, a assessoria informou que o órgão não iria se manifestar por se tratar de uma reserva particular. Após algumas horas retornou as ligações informando que o órgão já havia entrado em contato com Hess e que daria a ele todo apoio necessário.
Por todo o Brasil
A história de Norberto Hess não é um caso isolado no país. Segundo Sônia Wiedmann, considerada uma das “mães das RPPNs”, situações em que o direito de executar uma obra de “utilidade pública” se sobrepõe à preservação da biodiversidade acontecem por todo canto, em reservas particulares ou em unidades de proteção integral. Esses são os casos do Parque do Itatiaia (RJ), cortado por um oleoduto, ou do Parque Nacional da Serra da Canastra (MG), há anos cortado em toda sua extensão por linhas de transmissão de energia. “Os desmandos são enormes e isso é um problema histórico do país”, diz a advogada.
Para ela, isso é um reflexo da maneira como a política ambiental é conduzida no Brasil. “Não existe sintonia entre os programas de governo”, lembra. Apesar de todos os entraves burocráticos e da falta de acompanhamento do órgão competente, ela ainda acredita que proprietários de terra não se sentirão desestimulados a criar instrumentos de proteção em suas áreas. “O número de RPPNs no país é hoje o dobro das unidades de conservação federais. Quando a [categoria] RPPN foi criada, houve um engajamento social muito grande e ela tem se mostrado como um instrumento muito útil para a conservação. Isso não pode acabar”, diz. Tomara que Sônia Wiedmann esteja certa.
fonte: http://www.portaldomeioambiente.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1365
Nenhum comentário:
Postar um comentário